Ana Lúcia Freilão Água's profile

A minha mãe é uma central hidroelétrica

 

Lembro-me de chegar a casa naquele domingo e de sentir logo uma energia diferente na nossa casa. A minha mãe acolheu-me com aquele mesmo abraço terno e saudoso, mas eu percebi, do alto dos meus 8 anos bem despertos, que ela calava um desapontamento apenas refletido nos estores descidos da sala, na TV e no portátil desligados, na louça do almoço por levantar da mesa. Pequenos sinais de ausência da minha mãe. Minha mãe habitualmente presente.
Eu era criança e sentia-me protegida. Nisso a minha mãe era muito boa. Às vezes preferia que ela soubesse que eu percebia, porque talvez assim ela não sufocasse tanto. Compreendo a opção e acho mesmo que não poderia ser outra. Tratei logo de, irrefletidamente, fazer coisas de criança: ignorei os estores e a louça e liguei a televisão. Respondi às perguntas da praxe, ouvi as instruções da praxe, contrariei algumas, como era da praxe. Os silêncios do costume também ali estiveram, ou talvez não. Lembro-me da minha mãe ao telefone ainda nessa noite, a ouvir mais do que a falar e a sorrir-me, sorriso com uma mensagem de consolação, mais para ela do que para mim. E as últimas palavras de que me lembro nessa noite de férias da escola, noite em que me deitei com a minha mãe para dormir, mas só eu dormi, foram murmuradas em oração “Senhor, dá-me o dom do esquecimento”.
Só alguns meses mais tarde eu assumiria a compreensão do que a minha mãe precisava de esquecer. Só alguns anos mais tarde eu seria mesmo capaz de alcançar aquilo de que nem ela se atreveu na altura. A minha mãe tinha urgência em arrumar a memória que ela gostaria de ter repetido e melhorado. Antes de ser memória, tinha sido presente e um presente e desembrulhado por quatro mãos felizes, daquelas que querem aproveitar o papel e o laço e, mesmo sabendo o que vem dentro, ainda se surpreendem. Duas pessoas que viveram um amor concreto, mesmo que o amor seja abstrato. Abstratos são também os pensamentos antes de se materializarem em ações e objetos. Este amor concretizou-se em objetos, gestos, sons, imagens, textos. Foi um amor no plural e na multiplicação, mas encontrou um obstáculo no valor dado ao tempo: longo demais para ele, curto demais para ela. Não foi encontrado um meio termo e isso tem tendência a matar o amor que existe no “nós”. Mas não apaga a memória individual. Infelizmente, pensava a minha mãe. Embora acreditasse que Deus distribui o tempo de forma perfeita e que o homem, com o livre arbítrio que lhe é dado, é que não sabe geri-lo, não entendia a crueza da imposição do fim quando o tempo parecia ser tão certo. Parecia.
Foi de tempo que a minha mãe precisou para arquivar os materiais desta história. O salto qualitativo que já dera noutros momentos de crise emocional alterou a sua tendência masoquista. A minha mãe entendeu que não podia ser o gerador de alguém que só a ligava quando faltava a luz em casa. É que a minha mãe era de facto uma central hidroelétrica, na pujança máxima da sua energia. Apenas os olhos que conseguissem suportar a intensidade dessa luz e não se sentissem ofuscados por ela haveriam de não mais se desviar. Ainda que a distância… Ainda que o tempo…
No dia seguinte, a central hidroelétrica acordou com o sol, abriu as comportas e trocou a lâmpada intermitente. Era abril. Era o princípio do livro.
A minha mãe é uma central hidroelétrica
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A minha mãe é uma central hidroelétrica

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